Pode o Mundo Viver Sem o Dólar? Entre Dívida, Geopolítica e Desconfiança

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Ao longo da história recente, poucas moedas assumiram um papel tão preponderante quanto o dólar norte-americano. Desde o final da Segunda Guerra Mundial, a moeda dos Estados Unidos da América afirmou-se como o pilar do sistema financeiro internacional, servindo de reserva cambial, de referência no comércio de matérias-primas e de activo de refúgio. No entanto, sinais recentes levantam dúvidas sobre a capacidade do dólar em preservar, sem contestação, esse estatuto hegemónico.

Para lá da política monetária da Reserva Federal, factores estruturais como o peso da dívida pública americana, a fragmentação geopolítica e a busca cada vez mais intensa de alternativas por parte de países emergentes começam a corroer a confiança no futuro desta divisa. 

 

O Fardo da Dívida Americana

A dívida pública dos Estados Unidos ultrapassou os 34 biliões de dólares, crescendo a um ritmo que inquieta investidores e parceiros internacionais. O défice orçamental crónico obriga o Tesouro a emitir volumes cada vez maiores de dívida, pressionando as taxas de juro a médio prazo e alimentando receios sobre a sua sustentabilidade.

Figura 1 –  Evolução da Dívida Pública Norte-Americana (1966 – 2T 2025)

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Fonte: Federal Reserve Bank of St. Louis.

Até hoje, a capacidade de financiamento do país deveu-se à confiança inabalável no dólar e na solidez da economia americana. Contudo, à medida que esta dívida se acumula, começam a surgir perguntas incómodas sobre o apetite global por dívida denominada em dólares.

 

O Desafio Geopolítico

A guerra na Ucrânia, as tensões no Médio Oriente e a crescente rivalidade entre Washington e Pequim têm reforçado a utilização das moedas como instrumentos de política externa. As sanções financeiras impostas pelos EUA e pelos seus aliados consolidaram a percepção de que o acesso ao sistema financeiro dominado pelo dólar pode ser restringido por decisão política.

Neste contexto, não surpreende que países dos BRICS - em particular, a China e a Rússia - tenham intensificado esforços para reduzir a dependência do dólar norte-americano, promovendo o uso de moedas locais no comércio bilateral e defendendo a criação de sistemas alternativos de pagamentos.

 

Desconfiança e Procura por Alternativas

O enfraquecimento do dólar não significa, porém, que outra moeda esteja pronta para assumir o seu lugar. O euro carece de uma união fiscal robusta, o yuan enfrenta restrições de convertibilidade e transparência, ao passo que o ouro não oferece a flexibilidade necessária para servir como unidade de conta global.

Figura 2 –  Evolução Recente do USD versus o EUR e o Ouro (XAU)

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Fonte: Bloomberg.

Mais do que uma substituição imediata, o que se observa é uma diversificação gradual. Os bancos centrais têm vindo a reduzir a alocação a dólares nas suas reservas, aumentando a exposição ao ouro, ao yuan e a outras divisas regionais. Trata-se menos de uma corrida contra o dólar e mais de uma busca pela obtenção de um equilíbrio mais amplo num sistema multipolar.

 

Até Onde Resiste o Dólar?

A força de uma moeda assenta em vários factores, sendo que nalguns destes os Estados Unidos continuam a destacar-se. O mercado financeiro norte-americano apresenta-se como o mais desenvolvido a nível global, enquanto o país dispõe de uma capacidade tecnológica ímpar e uma influência geopolítica que dificilmente será igualada no curto prazo.

O peso da dívida, as tensões globais e as políticas adoptadas pela actual administração norte-americana poderão, contudo, fragilizar o prestígio do dólar. Assim, podemos entrar numa era em que o dólar continua central, mas progressivamente partilha espaço com outras moedas e activos, num sistema mais fragmentado e competitivo.

Perante este cenário, a questão central não é tanto se o mundo pode viver sem o dólar, mas antes perceber até que ponto está disposto a depender menos dele. A dívida pública americana, as divisões geopolíticas e a procura por uma maior autonomia financeira estão entre os factores que empurram o sistema nesta direcção.

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